Escrevinhei estas linhas num belo dia de agosto, enquanto calcorreava terras e gentes do mundo. Já não me lembrava do Fernandito…
Aproveitar as férias para visitar os mesmos locais é quase um ritual. Não espero encontrar nada de novo, apenas reviver o passado. Mas, às vezes, antecipando a necessidade de no futuro guardar mais lembranças, encontro surpresas. Foi assim quando, numa feira, me deparei com uma exposição dedicada à imprensa regional do distrito: a primeira página do número um de jornais quase todos extintos.
Procurei, em vão, títulos da minha terra. Fiquei com pena, até enraivecido. Ainda assim, deliciei-me com o que vi: notícias dos finais da monarquia, da I República e dos primeiros anos do Estado Novo. Reclamamos hoje da forma como se escreve, mas, olhando bem, a raiva e o ódio já se encontravam impressos há um século, alimentados pelas disputas entre monárquicos, católicos e republicanos.
Um artigo da A Voz da Pátria (quinzenário integralista de Sernancelhe) prendeu-me a atenção. O seu diretor, um padre, insultava Afonso “Pulha” da Costa e os republicanos, apresentando contas de impostos absurdas: rendimentos tributados a 106%! O tom inflamado era mais panfleto do que jornalismo, mas dizia muito do espírito da época.
Já na Folha de Tondela, de 1906, o noticiário “Pelo Tribunal” dava con
ta de condenações quase picarescas. Casimira de Jesus, por ofensas corporais, recebeu 20 dias de multa; Maria Emília e Casimiro Pimenta foram punidos por “ofensa à moral pública”; dois homens foram acusados de pescar com dinamite — um condenado, o outro absolvido graças ao patrocínio do advogado certo. Lendo, parecia até uma espécie de guia prático: se tivesse a infeliz ideia de dinamitar rios, sabia já a quem recorrer!
No Notícias de Tondela, de 1931, encontrei preocupações com o trânsito: placas de sinalização recém-instaladas, motoristas locais respeitadores, forasteiros que passavam em “te corredias loucas” a mais de 20 km/h. O articulista sugeria multar um deles, “para exemplo de outros”. Um mundo diferente, mas não tão distante.
E, no entanto, nenhuma destas páginas me marcou tanto quanto uma curta nota nos Ecos do Caramulo, também de 1931: um editorial intitulado “O Anjinho”, dedicado à morte de uma criança. Dizia-se:
“…O Fernandito, o meigo e gracioso Fernandito, que fez sonhar a seus pais as fagueiras e risonhas esperanças, desprendeu-se-lhes dos braços e, como uma pombinha branca de alvura imaculada, bateu as asitas e subiu apressadamente ao céu, onde era esperado pela divina orquestra dos anjos. Baldados foram os esforços empregados, impotente foi a ciência para salvar a vida ao pequenito, encanto dos pais inconsoláveis, cujo golpe profundo ainda sangra e parece não cicatrizar-se tão depressa.”
Entre dinamites e multas, impostos e insultos políticos, ali estava a fragilidade da vida. Uma breve notícia que não deixou espaço para o esquecimento: o Fernandito, transformado em símbolo da dor e da ternura eternas.
Velhas folhas, velhas notícias — vulgares ou sublimes — dão à vida sabores que atravessam o tempo. São pedaços de um passado que insiste em participar do presente. Mesmo quando quase ninguém se lembra do Fernandito.
Salvador Massano Cardoso
Folha de Tondela Jornal centenário da região de Viseu